Entrevista a Claudio Torres

30/6/14 .- http://www.publico.pt

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Entrevista a Claudio Torres

De Tondela a Marrocos num ex-barco a remos, passando pela prisão


Neto de militar monárquico, filho de historiador comunista, Cláudio Torres entrou aos 19 anos no PCP. Aos 20, conheceu a mulher em Belas-Artes e foi preso. Aos 21, fugiu com ela, grávida, e mais cinco pessoas num "barquito". Quase morreram
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Ia ser uma entrevista de vida, mas horas depois Cláudio Torres ainda tinha 21 anos. Portanto, o que se segue não é sobre a presença islâmica em Portugal ou o estado do mundo agora. Ou talvez tudo isso já esteja na juventude deste beirão de 74 anos, que durante a ditadura passou 14 anos no exílio. Ao regressar, instalou-se no interior alentejano, onde desenvolveu uma arqueologia pioneira, distinguida com o Prémio Pessoa em 1991. O pretexto do nosso encontro era uma homenagem recente, mesas-redondas em sua honra na Universidade de Lisboa e em Mértola, onde Cláudio mora, investiga e ensina (declaração de interesses: entre 2009 e 2010, a repórter frequentou semanalmente o mestrado dirigido por ele, e por causa dele, apesar de nunca o ter concluído).

A conversa começou em Mértola com almoço fora, rematado por bolo a sair do forno na casa que Cláudio e a mulher Manuela foram construindo, incluindo portas abandonadas, árvores de fruto e gatos. Continuámos na viagem para Lisboa, onde o entrevistado tinha de estar no dia seguinte. A sua bagagem para alguns dias era uma mala de computador. Talvez caiba aqui, em epígrafe, o fim de um verso de Ruy Belo: preparo a minha juventude definitiva.

A QUINTA EM TONDELA. PAI E FILHO NO PC, SEM FALAREM DISSO

Como era a casa onde cresceu?

Os meus pais e avós eram de Tondela. Passei a infância, numa quinta com vinha, com tudo, a Quinta do Fojo. O meu avô [paterno] tinha ali família antiga. Era militar na Monarquia, esteve em Angola na I Guerra. Quando proclamaram a República, foi preso. Eu tinha uma enorme admiração pelo velho capitão Flausino: histórias de África, a mitologia das guerras. Foi posto fora do exército por ser monárquico e pelas questões que arranjou em África, um anti-racismo, a ligação com o mundo indígena. Ele e a minha avó eram muito católicos. O meu pai [o historiador Flausino Torres] é empurrado por eles para o seminário, depois foge e é um dos fundadores do Partido Comunista Português [PCP] nos anos [19]30.

Em Tondela?

E depois em Coimbra, onde é estudante. Quando o salazarismo toma o poder, ele já dirige a imprensa da Universidade, é posto fora e vem para Lisboa trabalhar com o [matemático, comunista] Bento de Jesus Caraça na [editora de divulgação científica] Cosmos. Aí publica as suas primeiras obras de História.

O Cláudio nasce em Lisboa?

Em Tondela. Mas vou para Algés, onde os meus pais viviam. O meu pai dava aulas no bairro escolar do Estoril e a minha mãe tinha um pequeno colégio em Lisboa, o Infante Dom Henrique. Ela era de uma aldeia perto de Tondela, Mosteiro de Fráguas, mas eles tinham-se conhecido em Coimbra. A minha mãe foi aluna dele. Depois ele tem problemas políticos, volta para Tondela em 1947. O meu avô ainda lá estava.

A comandar a propriedade.

E eu venho fazer a escola primária ao Mosteiro de Fráguas, na escola da minha tia.

Os seus pais ficam na quinta de Tondela.

Precisamente. Está lá, ainda. É o casarão onde a minha irmã vive, onde vamos pelo Natal e pela Páscoa, sempre um local de encontro, com vários quartos.

Uma família de esquerda que celebra Natal e Páscoa. Com os rituais religiosos?

Não, que horror. Festejamos a parte interessante, que é juntar a família. A minha irmã continua a ter couves, árvores de fruto. A vila comeu uma parte da quinta, mas o que resta ainda é muito bonito, o casarão, árvores da infância, o grande castanheiro.

Havia uma biblioteca?

A biblioteca do meu pai, com 15 mil volumes. Quando foi para o exílio [na Argélia, a meio dos anos 60], uma parte estragou-se. O que restou está aqui em Mértola, especialmente História e Sociologia. Ele era professor no colégio da vila, criou um grande prestígio, era ouvido. Sabiam da ligação ao Partido Comunista, mas ninguém lhe tocou.

Eu saí de Tondela porque chumbei no 5.º ano. Fiquei com uma certa vergonha. O meu pai sempre viveu dificuldades económicas.

Apesar da propriedade?

Sim. Vendia-se algum vinho mas não era isso que suportava a família. Com a sensação de que perder o 5.º ano era uma vergonha para o meu pai, resolvi trabalhar. Fui para Aveiro, para a fábrica de azulejos Aleluia, onde havia um grande amigo do meu pai, o Mário Sacramento.

Isso com que idade?

Dezanove. A célula do PC apanhou-me logo na fábrica. Eu nem fazia ideia de que existisse em Portugal um partido comunista. O meu pai nunca falou do assunto.

Não sabia da história do seu pai com o PC?

Nada. Do que me recordo é que, quando tinha problemas nas aulas e perguntava ao meu pai, ele dizia: "Vai ver a tal prateleira..." Então, num problema que tive com o professor de História, sobre socialismo, andei a tentar ler o Anti-Duhring do Engels. Fui debitá-lo com alegria para as aulas e quase fui expulso. "Isso é comunismo!" Eu nunca tinha pensado que tal coisa existisse.

Quando descobre o PC em Aveiro, fala ao seu pai?

Não!

Ou seja, cada um trabalhava para o PC sem saber do outro.

Era impensável haver um contacto. O funcionário que me controlava em Aveiro era um homem fantástico, o João Honrado. A nossa célula era eu e um colega, o José Bento. A outra célula era em Ílhavo mas não podíamos ter contactos. Tivemos só dois ou três encontros de noite, no pinhal, as pontas de cigarros a brilhar, seis ou sete personagens do outro lado.

Mas falavam?

Claro! Era uma discussão política.

Entre brasas de cigarros?

Às escuras!

O que é que discutiam?

Questões práticas. Havia uma grande greve em Matosinhos e ficámos encarregues de fazer os panfletos. Por que é que eu entrei [para o PC]? Porque era de boa cepa.

Sabiam que o seu pai era do PC.

Precisamente. O João Honrado [que controlava toda a zona Centro] não podia andar de transportes públicos porque era apanhado, então vinha a pé de Coimbra até Aveiro para a gente falar. Eu vivia num quartito alugado e ele ficava lá. Vinha com os pés em sangue. A gente chamava-lhe o Patolas porque era um homem alto, com pés enormes. Chegava com as meias desfeitas e as minhas meias ficavam-lhe a meio do pé. Não é imaginável hoje o que era isto.

Ele dormia no chão?

Numas almofadas.

[Chega Manuela, senta-se a seu lado, Cláudio põe-lhe a mão no braço.]

Estudava e trabalhava ao mesmo tempo?

Ia a umas aulas vagamente. Estava a preparar-me para o exame do 7.º ano.

Que queria fazer da vida?

Tinha a mania que era artista. Gostava de desenhar. [Entretanto] o Américo Tomás ia a Aveiro e a célula tinha de lhe fazer uma recepção. Andámos várias noites a pichar todo o canal central, o Zé a segurar-me nas pernas. Porque o gajo chegava de barco.

E tinha de ter ali um mural a dizer o quê?

"Abaixo Assassino!" "Amnistia!" As frases da época. Quando se pinta com nitrato de prata, fica água, só de manhã é que se lê. Então as pichagens eram todas com nitrato de prata. No canal central, foi uma noite horrível. Andávamos a pintar de cabeça para baixo, com letras grandes, uma trincha. E fizemos mais coisas. O mais difícil foi um boneco de seda todo branquinho com os botões dourados de almirante, depois puxado por uns balões e lançado em plena avenida quando o gajo estava a chegar.

Funcionou?

Mal, mas funcionou. Tive de ir ao Porto comprar balões de hidrogénio. Um grande malão para meter os balões, trazer a mala de comboio, que horror. Era preciso puxá-la para baixo!

Senão levantava voo.

Foi uma viagem sinistra [gargalhadas]. Um gajo com medo, a passar a estação. E fizemos centenas de milhares de panfletos, consegui lançá-los do Teatro Aveirense, das janelas das retretes, l?? em cima, quando o gajo estava a chegar. Tive de fugir quando já era o final do cinema, nem sei que filme. Um gajo fica só a pensar no que vai fazer a seguir, o desespero de poder lançar quando as pessoas estão a sair, e ainda sair antes de ser preso. Mas a coisa tornou-se grave em Aveiro. O Zé foi preso. Viria a ser meu cunhado, casou com a minha irmã Marcela, conheceram-se à saída da prisão.

Sai de Aveiro por isso?

Também porque tinha acabado o ano.

E quando é que enfim soube que o seu pai era do PC?

Ainda durante a campanha do Humberto Delgado [em 1958] assisto a uma discussão entre o meu pai e o funcionário [que tinha ido a Tondela controlar pai e filho]. O meu pai queria que o partido apoiasse o Delgado, porque o partido apoiava o Arlindo Vicente.

Esse é o momento da revelação?

É. Os dois a discutir, eu a tentar perceber, sem estar ao pé.

Nessa altura conversa com o seu pai?

Não, não. A primeira vez que a gente fala é quando sou preso no Porto.

BELAS-ARTES NO PORTO. NAMORO MILITANTE

Vai para o Porto em 1959.

Para Belas-Artes, depois de Aveiro. É aí que vou conhecer esta gaja [aperta o braço de Manuela].

Foram colegas? São da mesma idade?

MANUELA - Não, eu sou mais velha. Estava em Arquitectura, mas mudei.

Cláudio - Mudaste para estarmos mais perto [gargalhada].

MANUELA - Não, desculpa. Já estava matriculada, não mudei por tua causa.

Cláudio - Não? Que chatice [gargalhada].

É preso no Porto em que ano?

Em 1959. Quando chego, encontro outro funcionário [do PC]. A gente trazia uma senha. A tampinha de uma caixa de fósforos partida a meio. Encontrámo-nos cada um com a sua metade a ver se dava. Dava: era o meu controleiro do Porto.

MANUELA - Não sabia.

[Cláudio, rindo] Ai não? Ficas a saber.

A Manuela sabia que o Cláudio era do PC?

MANUELA - Antes do Cláudio, nem sequer tinha ouvido falar do PC.

Mas o Cláudio contou-lhe?

MANUELA - Não.

Cláudio - Nem pensar.

Quando é que veio a saber?

MANUELA - Na prisão.

Quando ele foi preso?

MANUELA - Quando fomos presos os dois.

Mas a Manuela não tinha nada a ver com o partido.

MANUELA - Não.

[Gargalhadas dos dois]

Cláudio - Tinha havido a prisão da grande célula do Porto, Borges Coelho, os chamados jovens, 80 e tal. Então, quando cheguei, a nossa célula eram só dois gajos, eu e o David. Entro na Escola de Belas-Artes, um mundo apaixonante, uma ilhota a nível nacional, de alta qualidade. Fui para Escultura.

MANUELA - E fazia coisas muito bonitas.

Cláudio - Diz ela [gargalhada].

Qual era o seu material?

Cláudio - Na escola, qualquer um. Depois ferro e metais. E começámos a ter uma vida dupla fora da escola.

A Manuela também?

Começou logo.

Embora não soubesse que o Cláudio estava no PC.

Não tinha nada que saber.

MANUELA - Eu fui seduzida por ele do ponto de vista intelectual.

Cláudio - Eh lá... [gargalhada]

MANUELA - Falou-me de coisas que eu nunca tinha ouvido. Que havia pobres e ricos. Que os ricos eram contra os pobres e os pobres tinham de lutar contra os ricos. E a História, que não era só de reis e rainhas, era a das pessoas que trabalhavam desde a Pré-História.

A História dos Vencidos já nessa altura?

MANUELA - Foi a história dos vencidos que me venceu.

CláuDIO - Até hoje [gargalhadas].

MANUELA - Ele era um bonito rapaz. Mas sobretudo era aquele mundo que me estava a desvendar, em comparação com o meiozinho pequeno-burguês, de filha de bancário. Não de banqueiro, como ele depois me acusou.

[Gargalhadas]

MANUELA - Era um contraste extraordinário. Ele dava explicações de História e eu assistia.

Isso da História dos Vencidos vinha do PC?

Cláudio - De antes.

MANUELA - Das aulas do pai.

Cláudio - Da biblioteca dele, do ambiente, de estar atento às discussões. E o mundo camponês onde ele estava. O respeito pelas pessoas que trabalham. O ódio aos poderosos. Tudo isso a gente sente desde pequenino.

A noção de que há que construir uma História dos Vencidos já era desenvolvida pelo seu pai?

Cláudio - Toda a sua historiografia vinha daí.

Então, lá estavam em Belas-Artes, iam mudar o mundo. E depois apareceu a polícia?

MANUELA - Fazia-lhe imenso jeito namorar comigo. Íamos fazer pichagens de noite e, quando havia sinal de que vinha aí gente, púnhamo-nos aos beijinhos no vão das portas e escondíamos com o corpo latas e pincéis.

Um par de namorados inocente.

Cláudio - Inocentes nada, a gente aproveitava como podia.

Tinham liberdade para namorar?

MANUELA - De noite sim, nas ruas escuras.

Cláudio - Ela estava num lar de freiras. Como era quando chegavas de manhã?

MANUELA - Isso era quando já tinha saído do lar.

Cláudio - Ah, pois era.

Mas passava a noite fora?

MANUELA - As pichagens eram a noite toda.

Mas aí já sabia que o Cláudio estava no PC.

[Ambos] Não!

MANUELA - Não se falava do partido.

Cláudio - Que horror!

MANUELA - Mas quando fui presa sabia perfeitamente.

Como é que acontece essa prisão?

Cláudio - É numa dessas pichagens. Mais uma vez o Américo Tomás: ia ao Porto. Aquele gajo perseguiu-me toda a vida. A célula éramos dois e houve uma reunião em que a minha irmã entrou. Eu e a Marcela vivíamos numas águas furtadas na Rua de Santo Ildefonso, um quartito miserável.

MANUELA - Por isso é que davas explicações.

Cláudio - Um dinheirito, porque os meus pais não tinham mais. Então houve a visita do gajo e nós dividimo-nos para uma grande campanha, eu fiquei com uma metade do Porto e o David com outra. E tínhamos os compagnons de route [aponta Manuela] que vinham trabalhar na legalidade.

MANUELA - Para as pichagens, era preciso quatro: dois para pintar, um para o princípio da rua, outro para o fim.

Então a PIDE apareceu?

Cláudio - Na parte do David. Foram presos e fomos todos denunciados. [Pausa]

MANUELA - Um deles falou.

Cláudio - Um deles falou. Pronto. Fomos todos, uns 12, para a PIDE do Porto.

PRISÃO E TORTURA. RETRATO

DOS PIDES. CASAMENTO

[Manuela fica em Mértola. Cláudio segue no carro do PÚBLICO para Lisboa, prosseguindo a entrevista.]

Como vos trataram na prisão?

Estive 20 dias em estátua. Nove seguidos, depois mais três, depois mais sete. A pessoa não pode dormir: pontapés, barulhos vários. Foram-nos prender em época de exames, e toda a chantagem inicial é essa: rapidamente resolver aquilo, para a gente não perder o ano.

A gente tinha ordens do partido: na prisão não se fala, o fundamental é isso. A minha irmã Marcela, mais jovem que eu, nem sequer respondia às perguntas normais dos gajos. Eles pensavam que tinham apanhado um peixão. Esse exagero foi complicado para ela. A mim, ao contrário, só me apetecia falar. Estive todo o tempo a falar com eles.

Sem dizer nada.

Claro. Para saber quem eram. A PIDE tinha 60 agentes no Porto. A pouco e pouco comecei a conhecê-los, a perguntar o que faziam.

Respondiam?

Eu não os largava. Mais de 80% eram seminaristas, de origem humilde. Quando saíam do seminário queriam continuar os estudos mas não tinham dinheiro. Portanto, saíam para a tropa e a seguir eram recrutados [para a PIDE]. Estavam seguros da sua religiosidade, recebiam ordens e acatavam-nas. Foram presa fácil.

Depois, como sempre acontece nestas prisões, havia os bons e os maus, revezavam-se. Os maus vinham ameaçar quando me atirava para o chão porque não aguentava mais de sono, desatavam aos pontapés. Então vinham os bons falar mal dos outros, para criar confiança. Toda essa dinâmica.

Que acontece ao fim de nove dias e noites sem dormir?

A gente deixa de ter controle, começa a ver coisas, bichos pelo chão. Mas o principal é os pés, começam a inchar, umas dores horríveis, as meias metem-se pela carne. Até que a pessoa deita-se para o chão e não se levanta mais, protesta, etc. Falar com eles foi uma forma que encontrei para passar aqueles dias.

Fazer um retrato sociológico do opressor.

Conhecê-los um a um, as suas questiúnculas internas, atirando-os uns contra os outros.

Tinha notícias da Manuela?

Vinham uns bandidolazecos contar a noitada que diziam ter passado com ela. Para nós, jovenzitos, era terrível. Foi das piores torturas, ter de aguentar o que contavam.

Mas como comunicava com ela?

Depois da primeira estátua, já na cela, a gente conseguia comunicar com pancadinhas para os vizinhos. Aprendemos os códigos: A é um, B é dois, C é três... Tempo não faltava. Conseguíamos fazer mensagens inteiras. Através das pancadinhas [de vizinho em vizinho] conseguimos comunicar de forma a deixar um bilhetinho na sanita. Havia uma sanita comum, ao fim do corredor. Mas eles sabiam tudo.

Os bilhetes eram lidos.

Todos.

Portanto, comunicação mas sem nada que prejudicasse o partido.

Coisinhas amorosas, vagas. Foram as nossas cartas de amor. Debaixo da sanita [gargalhadas].

Essa prisão durou quanto tempo?

Três meses. Aqueles que não eram do partido depois foram libertados. Só ficámos os três dentro até ao julgamento, eu, o David e a Marcela. Nós dois fomos transferidos para a Prisão Central do Norte, Paços de Ferreira. Três mil e três presos, mas só nós políticos, portanto, estávamos num pavilhão sozinhos. Também foi interessante. O director quis fazer dinheiro e só dava sopa aos presos. Eu e o David começámos a fazer greve de fome para exigir segundo prato. Ele não podia queixar-se à PIDE, tinha medo disso. Foi uma greve de fome de seis dias, aprendemos um com o outro para aguentar.

Tinham que idade?

Vinte e um anos. O curioso é que ganhámos. Foram obrigados a dar o segundo prato a três mil e tal presos. Depois disso, quando atravessávamos a prisão éramos recebidos às palmas, com uma fiada à nossa passagem. Os heróis da greve.

Quanto tempo ficaram nessa prisão?

Mais três meses. Depois foi o julgamento. Não conseguiram provar nada. Fomos condenados à prisão sofrida.

Mas ainda na PIDE é que falei pela primeira vez com o meu pai sobre o assunto [o partido], quando ele me veio visitar, me abraçou, e me falou ao ouvido: "Aqui não se fala."

Mais nada?

Mais nada. O abraço era tudo. De um carinho, de uma força. Até essa altura, ele nunca tinha sido preso, e logo dois filhos presos.

Depois do julgamento, eu e o David fomos libertados de Paços de Ferreira e a Marcela da PIDE do Porto. Entretanto, eu faltara à inspecção militar e a guerra colonial tinha começado. Tive de ir a uma inspecção especial, num quartel em Coimbra. Foi uma coisa insólita verem chegar o gajo que vinha da prisão na PIDE. Fizeram quase uma ala para me ver, com admiração e amizade. Uma experiência com que eu não contava. E na inspecção, médicos e oficiais receberam-me principescamente. Fui aprovado para todo o serviço e teria de me ir apresentar ao quartel de Penamacor.

É então que casa com a Manuela.

A gente casou-se porque tinha de fugir, e não podíamos fugir sem ser casados, até porque foi uma das condições da mãe da Manuela, que nunca autorizaria assistir a um casamento que não fosse a sério.

E não era uma opção não ficarem juntos.

Já estávamos juntos, indissociavelmente. Não era possível separarmo-nos. Estava decidido.

Foi assim um amor à primeira vista?

É daqueles amores de adolescente que nunca mais acaba. A escola, a cumplicidade, tudo ligado. Conhecemo-nos com dois cavaletes, um ao lado do outro, a fazer pintura. E eu comecei a ter imensa inveja do traço dela, porque desenhava muito bem. A pouco e pouco, fui chegando mais o cavalete, para ver melhor.

Como era a Manuela?

Muito doce, aquela calma. E uma bonita mulher. Fomo-nos aproximando cada vez mais, a resolver as questões técnicas. Na pintura a óleo, ela também fazia coisas que eu invejava, umas velaturas que o Júlio Resende elogiava. Já estava há um ano na escola, conhecia o meio, que era novo e aliciante para mim. A Manuela também desempenhou esse papel, a sensação de um mundo a abrir.

E a prisão teve o efeito de uma aliança?

Os pais culparam-me: o bandido que levou a minha filha para a prisão. O irmão, Mário, médico em Paris ainda hoje, era um homem de esquerda, também refractário na tropa, foi um pouco cúmplice. Eu sentia culpa por a ter arrastado para essa aventura triste. No meio dela, uma filha na prisão era inaceitável. Isso deu-lhe uma ruptura enorme com o meio e atirou-a na minha direcção. Ficou praticamente sozinha. Não que fosse hostilizada.

Mas foi uma escolha.

Foi uma escolha. Ficámos ligados por uma cumplicidade, uma solidariedade.

E como eu tinha de me apresentar no quartel em Junho, era preciso fugir. O meu pai tentou ajudar, veio a Lisboa, aos estaleiros da margem esquerda falar com camaradas, encontrar um barco que fosse sair. Não foi possível. Tentámos os passadores de fronteira mas não havia dinheiro. Tinha de ser mesmo por mar. Então um velho amigo carregador do porto, o Valadas, falou com amigos e encontraram um barco a remos à venda, de boa construção, velhote, tábuas já apodrecidas. Não era feito para o mar, era ali do Douro, mas foi bem preparado. Eles ajudaram a comprar a madeira, a fazer uma cabinezinha à frente. Tinha cerca de cinco metros. De vez em quando íamos à Ribeira ver as obras.

Quantas pessoas iriam no barco?

Não fazíamos ideia. Iam aparecendo. Apareceu um contabilista, o Hermínio, que tinha estado preso. Depois vieram o Fernando e a Helena, com quem foi possível comprar um belo motor de 35 cavalos, novo. Foi uma peça fundamental. Montava-se rapidamente atrás, ficou um barquinho óptimo.

SETE EM FUGA. FOME, NAUFRÁGIO E REVOLTA

A vossa ideia era chegar a Casablanca?

A gente sabia lá onde era isso! Era preciso ir para o mar: o Norte era a Galiza, a Espanha, o franquismo, portanto tínhamos de ir para o Sul, e logo se via. Juntámo-nos sete. Era um grupo com duas mulheres, a Manuela e a Helena, coeso, embora politicamente díspar, porque só eu era do PC. O Valadas era próximo, a Helena e o Fernando eram mesmo anticomunistas, de certa forma. Mas tinham o dinheiro.

Os sócios capitalistas.

Ele daí a um ano tinha de ir para a tropa, e também não queria ir. Foi a noite de São João, despedimo-nos do Porto, andámos a festejar com os amigos e de madrugada viemos para o cais. Eu e a Manuela estávamos metidos na organização do Dia do Estudante, então embarcámos na camioneta para Lisboa e eles os cinco no barquinho. Fizeram uma viagem óptima do Porto para Lisboa.

Alguém tinha noção de como navegar?

Nada! Mas o mar estava chãozinho, entraram em Aveiro, na Figueira, sem problemas. Depois desembarcaram no Clube Náutico de Cascais, que era muito chique, e estupidamente foram dizer que vinham do Porto. O facto de aquele motor ter vindo até ali pelo alto-mar já tinha batido todos os recordes da marca, portanto queriam fazer-lhes uma homenagem! [Gargalhada]

Por causa dessa brincadeira, fomos obrigados a fugir de noite para o alto-mar e íamos morrendo. Vagazitas de dois ou três metros, nem isso, só que mortais para nós. Foi deitar fora tudo para não ir ao fundo, roupa, sacos. Toda a madrugada e manhã a fugir às vagas. Começámos a ver à nossa frente o cabo Espichel. É um cabo sinistro. Um desespero, fugir daquele monstro, e as vagas a empurrar. Começou a ficar tudo maluco. O pobre do Hermínio caiu no fundo do barco e ficou praticamente inanimado. Bom, lá segurámos aquilo e chegámos no fim do dia a Sines. Foi uma experiência traumática. O nosso marítimo, o Valadas, nunca tinha saído da barra do Douro! Sines, que é uma enseada protegida, era quase chegar ao paraíso. Ficámos oito dias a dormir, a comer, a recuperar forças.

Alojámo-nos numa casa que alugava quartos, como jovens de praia, a caminho do Algarve. E o dono da casa diz-nos que é chefe do porto! Foi um problema. A Helena era impossível de calar, nem com caneladas. Começámos a pensar: é preciso fugir, senão ele percebe quem somos. Mais uma vez fugimos de noite, para o mar alto. Tínhamos comprado um mapa, tentámos encontrar um porto de abrigo na costa alentejana, fomos parar à Arrifana, a que nessa altura só se chegava com umas cordas, não havia nenhum caminho, só uns barraquinhos de palha dos pescadores de lavagante, sazonais. E ali estivemos oito dias interessantes. Começaram a tratar-nos como defuntos, aqueles que vão para a morte, davam-nos tudo! Nunca falámos do assunto, para onde íamos. A gente ia tentando perguntar como eram os mares mais para sul.

Eles perceberam o que se passava.

Perceberam logo. Mas entretanto a coisa entre nós começou a piorar. Eram os meus, ligados a mim, e o Fernando e a Helena do outro lado, que queriam ir para o Algarve, de férias.

Mas não queriam exilar-se?

Ele só teria de ir embora daí a um ano, não tinha pressa. Entrou-se num litígio. Foi piorando, quase até uma ruptura. E quando largámos ela tentou virar o barco para o Algarve. Agarrou uma pistolazita que a gente tinha. Já tínhamos passado Sagres e houve uma luta. Era uma mulher com tomates.

Que é feito dela?

Já morreu. No 25 de Abril era mulher do [Hermínio] Palma Inácio [revolucionário, guerrilheiro contra o Estado Novo] e estava presa por causa dele. Abandonara o Fernando no Brasil.

Tirámos-lhe a pistola e seguimos para o alto-mar, com o nosso mapa, que era de escola.

Qual era o destino?

Começámos a pensar em Marrocos. Fomos a Aljezur buscar gasolina. A gente ia em cima dos bidons, e o barco cheiinho, só um palmo fora de água. Dava mais ou menos para meio do caminho.

Sete pessoas e não sei quantos bidons num barco de cinco metros.

A esperança era atingir a grande rota internacional para Gibraltar, dos barcos que vêm de África, das Américas. Ao fim de dois dias, a coisa já estava pior. Primeiro eram vagas que a gente ainda aguentava, mas entretanto a gasolina ia-se embora. E já estava a chegar ao fim quando um cargueiro grande passou. Tínhamos um manual da Mocidade Portuguesa de como navegar, aprendemos como se pedia socorro: eram duas bolas. Mas a gente não tinha as bolas! Então arranjámos uma meia e metemos-lhe um penico dentro.

Tinham um penico?

Claro, por causa das mulheres. A gente fazia fora de borda, mas para elas era chato.

Que situação.

A inconsciência completa. Portanto, a coisa começou a ser grave, vimos esse barco, começámos a fazer sinais, ele parou. Era um cargueiro grego, com malta porreira. Toda aquela malta a ver no oceano aquela coisita. Subimos. Eles lá nos indicaram a rota para levante.

Mas não vos recolheram?

A gente ainda estava bem. O mar não estava terrível. Deram-nos leite condensado, cigarros e principalmente gasolina até à costa marroquina. Beijos e abraços, lá se foram. Com um dia ou dois, a coisa piorou muito. O mar picou, vagas de proa. O pobre do Hermínio nunca deixou de estar deitado no fundo. Tudo a vomitar. Ainda por cima a Manuela ia grávida.

Nunca ninguém quis fazer um filme com essa história?

Alguns tentaram, foi falhando. Portanto, a pobre da Manuela ia grávida com três meses. Andámos mais uns dias às voltas, tivemos de virar para a América para fugir às vagas de frente, gastámos toda a gasolina. Tínhamos mais umas horitas de vida quando lá apareceu um monstro, um petroleiro enorme. Batemos tachos, penico, gritámos, mas eles não viam. Até que um gajito ia a passar na ponte e saiu a correr. Mas primeiro que aquela coisa parasse... Andou quase até à linha do horizonte. Quando as vagas subiam, a gente via-o. Depois percebemos que tinha parado. Começámos a aproximarmo-nos, mar cada vez mais picado, até às imediações do monstro. Era de Monróvia, liberiano. Tripulação italiana e dono americano. Ia para o Mar Vermelho, vazio, buscar petróleo. Veio um marinheiro com umas cordas para aproximar do casco, atirou-nos umas escadas, lá fomos todos, todo o grupo, depois eles meteram duas cordas à volta do barquito e puseram-no no convés. Como eram italianos, foi uma festa, abraços e beijos. Nunca tinham apanhado náufragos, fotografavam. E nós íamos náufragos mesmo, porque o barquito tinha uma bateria que se partiu e o ácido espalhou-se no barco. Portanto as roupas estavam todas em farrapos.

Existe um protocolo de solidariedade no mar.

Felizmente, porque o americano não queria. Foram os italianos que obrigaram o gajo a parar. Vamos tomar banho, lá nos vestimos o melhor possível, somos convidados para a mesa, esfomeados. Junta-se a tripulação na sala, com um certo luxo, nós sentados, eles à volta. E um criado persa vem servir hors d"oeuvre! Uma cena que eles filmaram, fotografaram. Depois somos levados oficialmente ao comandante. A gente explica-lhe que somos contra a Guerra Colonial, que não queremos participar, é a única referência. E que nos deixem em Marrocos. O gajo recebe-nos friamente. A viagem continua.

Daí a umas horas, estamos a chegar ao estreito. E mais adiante avisam que nos vêm buscar de Gibraltar. O barco pára nas imediações, vem um barco de guerra inglês, metem o barquito também lá em cima e levam-nos para Gibraltar, directamente para a prisão, fechados, isolados. Começam os interrogatórios. A única coisa que querem saber é se há comunistas. A gente diz que nunca ouviu falar de tal coisa. Falamos na fuga à guerra, sempre. Dão-nos 24 horas para deixarmos Gibraltar. Essa é a parte mais dramática: o barquito estava no cais, desfeito, quase. "Mas vamos quê, a nado?" E os ingleses: isso não nos interessa. As duas mulheres e o Hermínio tinham passaporte, podiam seguir no barco para Tânger. Nós tínhamos 24 horas para calafetar, arranjar as tábuas. Um velhote no porto que veio ter connosco era antifranquista, ficou nosso fã e explicou como se atravessa o estreito, que tem quatro correntes contraditórias: tínhamos de ir junto da costa espanhola, depois voltar por outra corrente. Lá saímos do porto, e veio logo uma vedeta inglesa obrigar-nos a pôr a bandeira portuguesa, porque só se pode sair de um porto com a bandeira nacional. Claro, isto foi logo notado e apareceu uma vedeta da Espanha. Não se aproximou, andou por ali a ver, a gente fingia que estávamos a veranear, fatos de banho, quatro mânfios, e a vedeta com binóculos. Quando começávamos a passar o último corredor, e eles tiveram a certeza de que íamos para Tânger, vieram atrás de nós, para nos parar. A gente pôs o barquito no máximo, como nos filmes. Uma corrida porreira e os gajos a atirar balázios. Caíam ao lado: bum! Então entrámos em Tânger perseguidos. Pronto, e chegámos a Marrocos. Pedimos logo asilo político, mas eles não sabiam o que era [gargalhadas].

PERIPÉCIAS EM MARROCOS. CHEGA DELGADO. UM NASCIMENTO

Os outros estavam à nossa espera, mas nós não podíamos sair do porto porque não tínhamos documentos. Ficámos ali uns dias. Eles tentaram encontrar estudantes, com quem teríamos solidariedades. Não havia universidades em Tânger. Tivemos de saltar o muro, enorme, com vidros, para ir para Rabat. Entregámos dinheiro a um puto para trocar, ele nunca mais voltou e ficámos sem um chavo. Então fomos no tejadilho do comboio. Chegámos a Rabat todos sujos, à procura da universidade, da União de Estudantes. E fomos recebidos de forma fantástica, com amizade total. "Venham para cá, a gente dá-vos o apoio todo." Os outros vieram de Tânger, ficámos alojados na sede da União três ou quatro dias, íamos comer a um restaurantezinho que eles pagavam. Foi aí o primeiro contacto com o mundo de Marrocos, o centro da cidade, a miudagem cá fora a ver. Até que a polícia invadiu aquilo, porque estava em litígio com os estudantes, e os estrangeiros eram os enviados do mundo exterior que vinham ajudar à revolta. Fomos presos, interrogados pessoalmente pelo [general Mohammed] Oufkir, um bandido da pior espécie, que mais tarde tentou matar o rei. Ficou-nos com tudo. A gente via-o a passear-se no nosso barquito, trouxe-o para Rabat.

Aí é um período complicado. Vimos para a rua sem nada, apoio de ninguém, os nossos amigos presos. Andávamos à cata das piriscas de americanos e europeus, só que tínhamos de chegar primeiro que os marroquinos. Desfazíamos as piriscas e juntávamos o tabaco. Foram quase dois meses. E a fome.

E a Manuela grávida.

Com aquela fome enorme. A gente ia para as lojas e nunca lhe deram uma coisinha. Começou a ser alimentada pelos mais pobres, que estavam ali com aquelas mesinhas, uns doces de que tínhamos de sacudir as moscas para ver a cor. Foi a comida que ela teve, e tinha sempre.

Onde dormiam?

Tínhamos bom aspecto, boa pinta, então a dona de uma casa logo nos deixou dormir no hall dela. Depois andámos à procura de qualquer coisa portuguesa. Fomos à procura do Clube Lusitano.

Fiéis ao regime?

Ambíguo. Havia lá uns foragidos algarvios, uns velhos republicanos, uns anarco qualquer coisa. A maioria eram antigos pescadores do Algarve que já estavam ali há 30 ou 40 anos, já eram construtores civis, serralheiros, bate-chapas. Aí também nos deram comida, houve contacto, um convite para casa de um português, casado, com duas filhas. Mesa posta, cheia de rendinhas, de comidas porreiras, eles todos vestidos a receber as visitas e a filha mais nova a tocar acordeão. Foi uma tortura.

Ouvir a música sem comer.

Nunca mais acabava. Mais uma! Mais uma! E ela toda feliz. Depois lançámos-nos como feras à comida. Viemos embora com um cesto cheio de vitualhas. A gente tinha pudor de falar da fome, mas eles perceberam. Essa casa tinha um barracão que dava para uma fabriqueta de madeiras, uma salita e um quarto de banho [onde acabaram por ficar]. Foi fundamental ter um espaço, com uns caixotes fizemos um mobiliário porreiro. Entretanto, a Helena e o Fernando estavam a receber dinheiro de Portugal, começaram a comer bem, estavam a pagar uma casa. Separámo-nos. E foi nesse barraco que começámos a ir aos polvos, eu e o Valdemar, que já morreu também. Não há praticamente ninguém vivo desta aventura.

Quem são os vivos?

Eu e a Manuela, e hipoteticamente o Hermínio, que de Marrocos foi para o Canadá, perdemos-lhe o rasto. Se for vivo, deve estar perto dos 80.

A dona da casa deu-nos um fogãozinho e eu e o Valdemar começámos a vir todos os dias para casa com um saco de polvo, porque ali ninguém comia polvo, e a praia estava cheia deles. Foi uma barrigada, mas não deixei de gostar.

Entretanto, apareceu a malta do Brasil, o Humberto Delgado, porque a nossa história tinha vindo na imprensa da emigração portuguesa. O Delgado queria vir connosco para Portugal. Pensava que a gente tinha um grande barco, que ia fazer um grande desembarque. Dissemos-lhe que o barco não dava nem para vir quanto mais para ir. E estivemos ali quase um mês a arranjar-lhe papéis para entrar em Portugal. Entretanto, tínhamos contacto com o Amílcar Cabral, o Marcelino dos Santos, o Agostinho Neto, que estavam em Rabat. Criámos uma associação de ajuda aos desertores, passámos a receber os que vinham de África, a trabalhar em conjunto, sobretudo com o Amílcar Cabral. E foi com o apoio do Amílcar que arranjámos um passaporte falso para o Delgado entrar em Portugal. Aí, comecei a aprender a falsificar passaportes, como arrancar a fotografia e pôr a outra. Quando ele nos foi visitar no nosso quarto de caixotes, a gente deu-lhe o mais alto. Era um tipo imponente, falava alto, não tinha medo, mas perfeitamente inconsciente, com esquemas infantis. Conseguiu entrar, fez aquele ataque ao quartel de Beja, e foi a Lisboa passear-se! Escapou por milagre. Foi o PC que o cobriu, até ele conseguir sair outra vez, então para a Argélia, que já tinha ficado independente.

A seguir, foi o [Henrique] Galvão a vir ter connosco. O plano dele era embarcar num avião da TAP que vinha de Moçambique ou Angola e fazia escala em Tânger. Ele queria que o ajudássemos a lançar os seus manifestos sobre Lisboa e depois o avião voltava a Tânger. Mas não aceitou as nossas condições: também queríamos lançar os nossos panfletos contra a guerra, e ele era a favor da guerra. Colonialista até ao tutano. Houve uma ruptura, e aí foi mais grave em relação ao Fernando e à Helena, que aceitaram ir lançar os panfletos dele. Negociando com o Governo marroquino, o Amílcar conseguiu que fossem expulsos para o Brasil quando vieram de Lisboa.

Mas que faziam vocês em Marrocos entretanto? Começaram a trabalhar?

O Valdemar e o Valadas estavam numa oficina de soldadores. Eu e a Manuela tínhamos entrado no Ministério do Urbanismo, concorremos como desenhadores e no meio de 50 marroquinos ficámos. Já estávamos a trabalhar quando ela teve a Nádia. Foi lá para um hospital central em Rabat onde não havia médicos, para uma sala cheia de mulheres a parir, todas a rezar e a cantar. Teve a Nádia sozinha, com a ajuda das outras, que não falavam nada de francês.

E vocês não falavam árabe.

Nunca falámos. E assim nasceu a Nádia. O nome quer dizer "gota de orvalho".

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